[Anteriormente: capítulo 1 (parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6,parte 7, parte 8), capítulo 2 ( parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6,parte 7, parte 8)]
E toda essa doideira, esse monte de fatos malucos e inesperados, junto com a morte do cara atropelado correndo atrás da namorada, soma tudo e veja no que dá na cabeça da pirralhada. Nem tanto assim, mas aí é que ta. O monte de estranhezas acontecendo nem era o pior. O diabo era a tremenda coincidência com o momento ímpar que um pequeno grupo da fedelhada daquele colégio fodido de gigante vivia. E de fato tudo teve a ver com o Diabo.
O Monstrinho acreditava que tudo aquilo era um sinal. Monstrinho era um aluno de nome Hermenejildo Oliviano de Oliveira, coitado, nessas horas é que eu entendo o fratricídio, os pais tão pedindo por isso, ah, tão, ainda mais com J, jota, caralho. Sei lá que porque cargas porque tinha esse raio de apelido, só que foi carimbado ali. Não era mais feio que qualquer um de nós, nem cometia atos realmente monstruosos, no bom sentido, claro. Lembro uma vez em estava na casa do Iran, que morava relativamente perto de casa, ou seja, era puta longe, mas menos que o colégio. O Monstrinho foi chegando, íamos assistir a um filme qualquer. Parou na porta. Esse viado aí é muito feio, disse o irmãozinho do anfitrão, que mal sabia falar, o pentelho. Em seguida os cachorros começaram a latir. Nunca os ouvira latir. Depois disto o apelido ganhou uma razão de ser. O sinal em questão seria um sinal de que algo muito ruim estava para acontecer com ele. Passou a tarde macambúzio, o que era mais um acontecimento incomum, visto que era um fedelho atentado, do tipo que conversa até com peixes num aquário. Na verdade, morria de medo. Isso tem explicação, coisas humanas sempre têm, sejam elas verdadeiras ou não. Coisa de um mês antes os gêmeos satânicos haviam nos apresentado para o jogo do copo. Aquele jogo tolo em que um copo é arrastado em frente a letras dispostas em tabuleiro. A idéia é que é uma forma de os mortos se comunicarem com os vivos. Não sei porque se vende este tipo de merda. E não sei porque os pais não quebram a porcaria quando a encontram, bom, hoje em dia isso deve dar até cadeia. Não sabíamos que se vendia, porém. O tabuleiro fora montado pelos satânicos mesmo, em uma cartolina preta, com letras em estilo gótico, vermelhas, diversos desenhos enigmáticos em branco e azul, bordas douradas, estrelas de David nos cantos, um olho egípcio no centro. Olho egípcio é um desenho de um olho, no estilo egípcio realmente, com uma espécie de sinal til em cima. Alguém o desenha e pergunta se já viu aquilo antes. Se a resposta é sim, pede-se para dizer onde, como ninguém diz, a coisa ganha ares de mistério e o inquiridor afirma então que é mesmo um mistério como alguém pode conhecer algo que nunca viu. Igual adivinhar a idade de alguém através duma equação em que pessoa pensa num número e vai dividindo, somando, multiplicando e tal. É mole, mole, nem tem graça explicar.
Os gêmeos satânicos eram dois irmãos gêmeos que se diziam adoradores do diabo. Eram meio góticos, ouviam heavy-metal, estavam sempre com camisetas do Iron Maiden, King Diamond ou outra banda com mote de terror ou satanismo. Jaquetas jeans bem surradas, que eles levavam dentro de suas pastas, e usavam só no pátio, claro. Muito, muito raramente eram vistos juntos, o que fazia com que alguns acreditassem tratar-se de uma só pessoa. Outra lenda. Numa porra duma escola fodida pra cacete, trocentas vezes melhor que as outras, era mito atrás de mito, imagina a bosta que não deve ser nas piores, o que me faz lembrar de cada besteira que eu encontrei na academia, tem professor que devia ser preso por torrar dinheiro público com babaquices, claro que o bom mesmo seria que burrice fosse crime, mas aí também já é pedir demais. Tinham um rosto muito puxado, olhos escuros, sempre pintados de preto, o que era um mistério já que nem as meninas podiam usar qualquer forma de maquilagem, incisos grandes e saltados para fora, pelo canto superior esquerdo dos lábios. Viviam com livros sobre o demônio, religiões, romances do Stephen King, pôsteres de bandas de heavy, reproduções de quadros com temas sombrios. Colaram nas costas de suas pastas um corte daquele quadro do menino chorando. O quadro do menino chorando era o quadro da cara de um menino chorando. A cara do menino chorando fica sobre um fundo escuro, meio verde, meio negro, muito comum. Uma lágrima descia pela face e os olhos brilhavam. Dizia-se que fixar o olhar tempos demais no quadro levava as pessoas à loucura. Uma história muito comum. Atribuía-se comumente sua autoria ao próprio Satanás, daí porque eles coloram a pintura nas pastas. Conversavam com poucas pessoas e sempre estavam cantando. Sabia-se que eram consumidores vorazes de todo tipo de substância entorpecente, desde as que dá para encontrar numa delegacia até outras mais caseiras: chá de fita cassete, xarope pra gripe, bolor, noz moscada em quilos e tudo o mais que alguém dissesse que desse barato. Não no colégio, que eram adoradores de Satã, não loucos. Foi o Iran quem os me apresentou.