A Morte de Craig Wilson – capítulo 3, parte 1 de 5

9 janeiro, 2009

[Anteriormente: capítulo 1 (parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6,parte 7, parte 8), capítulo 2 ( parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6,parte 7, parte 8)]

E toda essa doideira, esse monte de fatos malucos e inesperados, junto com a morte do cara atropelado correndo atrás da namorada, soma tudo e veja no que dá na cabeça da pirralhada. Nem tanto assim, mas aí é que ta. O monte de estranhezas acontecendo nem era o pior. O diabo era a tremenda coincidência com o momento ímpar que um pequeno grupo da fedelhada daquele colégio fodido de gigante vivia. E de fato tudo teve a ver com o Diabo.

O Monstrinho acreditava que tudo aquilo era um sinal. Monstrinho era um aluno de nome Hermenejildo Oliviano de Oliveira, coitado, nessas horas é que eu entendo o fratricídio, os pais tão pedindo por isso, ah, tão, ainda mais com J, jota, caralho. Sei lá que porque cargas porque tinha esse raio de apelido, só que foi carimbado ali. Não era mais feio que qualquer um de nós, nem cometia atos realmente monstruosos, no bom sentido, claro. Lembro uma vez em estava na casa do Iran, que morava relativamente perto de casa, ou seja, era puta longe, mas menos que o colégio. O Monstrinho foi chegando, íamos assistir a um filme qualquer. Parou na porta. Esse viado aí é muito feio, disse o irmãozinho do anfitrão, que mal sabia falar, o pentelho. Em seguida os cachorros começaram a latir. Nunca os ouvira latir. Depois disto o apelido ganhou uma razão de ser. O sinal em questão seria um sinal de que algo muito ruim estava para acontecer com ele. Passou a tarde macambúzio, o que era mais um acontecimento incomum, visto que era um fedelho atentado, do tipo que conversa até com peixes num aquário. Na verdade, morria de medo. Isso tem explicação, coisas humanas sempre têm, sejam elas verdadeiras ou não. Coisa de um mês antes os gêmeos satânicos haviam nos apresentado para o jogo do copo. Aquele jogo tolo em que um copo é arrastado em frente a letras dispostas em tabuleiro. A idéia é que é uma forma de os mortos se comunicarem com os vivos. Não sei porque se vende este tipo de merda. E não sei porque os pais não quebram a porcaria quando a encontram, bom, hoje em dia isso deve dar até cadeia. Não sabíamos que se vendia, porém. O tabuleiro fora montado pelos satânicos mesmo, em uma cartolina preta, com letras em estilo gótico, vermelhas, diversos desenhos enigmáticos em branco e azul, bordas douradas, estrelas de David nos cantos, um olho egípcio no centro. Olho egípcio é um desenho de um olho, no estilo egípcio realmente, com uma espécie de sinal til em cima. Alguém o desenha e pergunta se já viu aquilo antes. Se a resposta é sim, pede-se para dizer onde, como ninguém diz, a coisa ganha ares de mistério e o inquiridor afirma então que é mesmo um mistério como alguém pode conhecer algo que nunca viu. Igual adivinhar a idade de alguém através duma equação em que pessoa pensa num número e vai dividindo, somando, multiplicando e tal. É mole, mole, nem tem graça explicar.

Os gêmeos satânicos eram dois irmãos gêmeos que se diziam adoradores do diabo. Eram meio góticos, ouviam heavy-metal, estavam sempre com camisetas do Iron Maiden, King Diamond ou outra banda com mote de terror ou satanismo. Jaquetas jeans bem surradas, que eles levavam dentro de suas pastas, e usavam só no pátio, claro. Muito, muito raramente eram vistos juntos, o que fazia com que alguns acreditassem tratar-se de uma só pessoa. Outra lenda. Numa porra duma escola fodida pra cacete, trocentas vezes melhor que as outras, era mito atrás de mito, imagina a bosta que não deve ser nas piores, o que me faz lembrar de cada besteira que eu encontrei na academia, tem professor que devia ser preso por torrar dinheiro público com babaquices, claro que o bom mesmo seria que burrice fosse crime, mas aí também já é pedir demais. Tinham um rosto muito puxado, olhos escuros, sempre pintados de preto, o que era um mistério já que nem as meninas podiam usar qualquer forma de maquilagem, incisos grandes e saltados para fora, pelo canto superior esquerdo dos lábios. Viviam com livros sobre o demônio, religiões, romances do Stephen King, pôsteres de bandas de heavy, reproduções de quadros com temas sombrios. Colaram nas costas de suas pastas um corte daquele quadro do menino chorando. O quadro do menino chorando era o quadro da cara de um menino chorando. A cara do menino chorando fica sobre um fundo escuro, meio verde, meio negro, muito comum. Uma lágrima descia pela face e os olhos brilhavam. Dizia-se que fixar o olhar tempos demais no quadro levava as pessoas à loucura. Uma história muito comum. Atribuía-se comumente sua autoria ao próprio Satanás, daí porque eles coloram a pintura nas pastas. Conversavam com poucas pessoas e sempre estavam cantando. Sabia-se que eram consumidores vorazes de todo tipo de substância entorpecente, desde as que dá para encontrar numa delegacia até outras mais caseiras: chá de fita cassete, xarope pra gripe, bolor, noz moscada em quilos e tudo o mais que alguém dissesse que desse barato. Não no colégio, que eram adoradores de Satã, não loucos. Foi o Iran quem os me apresentou.


A Morte de Craig Wilson – capítulo 3, parte 3 de 5

9 janeiro, 2009

Pouca gente os chamava de satânicos, menos ainda na sua frente. Nunca o fiz. Nunca vi alguém conversar com algum deles sozinho, somente em turma. Eram uma fonte confiável de informações, sabiam tudo e tinham uma memória impressionante. Ganharam uma grana lascada vendendo o direito de vista a certas fotografias, o que só fez aumentar a sua fama de oniscientes. O caso era que uma aluna fora flagrada no vestiário do ginásio, num sábado à tarde. O homem correu com as roupas a tapar-lhe o rosto, o que deve ter sido engraçado. Era um professor. Primeiro eles divulgaram o nome do pobre, depois vieram as fotos. Foi armado. Ela e ele já se encontravam fora do colégio, o que não era e não é nada do outro mundo, se é que um dia foi mesmo. Às vezes ficavam ali mesmo, fora do horário. Não conheciam os BlueMoons. Se tem uma raça que é puta ingênua, é professor. Tudo que os sacanas fizeram foi convencer a lolitinha a permitir as fotos. Não foi difícil, porque estava magoada com ele e era atraente a idéia de ganhar dinheiro com o episódio que quase lhe custou a expulsão, o que só não ocorreu porque primeiro foi vista por um aluno e só na saída do ginásio por um inspetor, já devidamente vestida. Entre o flagra a o momento registrado nas fotos se passaram semanas, mas isto os gêmeos não informaram, de sorte que as fotos ficaram como do flagra mesmo e eu acho que de algum modo esses caras acabaram conhecendo o Michael Moore. É, ela não foi expulsa e ainda continuaram a meter dentro do vestiário, e vai saber se era o gosto do perigo ou a confiança na impunidade, corporativismo é um troço demoníaco mesmo. Ela só teve de dizer quando seria o encontro e em qual vestiário exatamente, o resto eles prepararam. Correu uma história de que ela não fora expulsa por causa da ligação dos irmãos com as forças ocultas. Pagava-se bem para ver as fotos, fosse em dinheiro, fosse em objetos quaisquer, fosse em favores. Cobravam o equivalente a um romance do Stephen King, o que não é exatamente pouco dentro de uma escola. Sei que até professores outros pagaram. A desgraça alheia é sempre um bom negócio. Não fosse assim, morreriam de fome os jornalistas, advogados e médicos.

Soube da armação por um deles mesmo, quando o reencontrei, cinco ou seis anos atrás. Tornou-se um grande traficante. Agora é dum do reis porque a qualidade de seu produto é insuperável. Sei porque eu mostrei como fazer. Tem problemas de distribuição, entre outros, por isso é que não toma conta de tudo por este lado do mundo. Mas eu vou te dizer, se você quer foder de vez com teu cérebro a ponto de nem saber e muito menos sentir a merda que virou tua vida, é dele que você tem que comprar, a doideira é tanta que um time de estivadores pode te comer o rabo duas semanas seguidas que você vai ajoelhar agradecendo a Deus por tua vida ser tão boa, quer dizer, ajoelharia porque em poucos dias o vício é tão forte que nem com o triplo da dose se tem um terço do prazer da primeira e só vai piorando, então em duas semanas tudo que você sente é a falta do bagulho e aí você mesmo se oferece para dar um mês inteiro por mais uma dose. Fodeu-se sem volta.

Um mês antes da tragédia no shopping os gêmeos nos apresentaram ao jogo do copo. Havia no colégio duas torres, na verdade duas grandes salas em uma espécie de quarto andar, ficavam na base do U, aquela parte onde ficava a administração. Para se chegar a elas subia-se dois lances de escada, que partiam do terceiro andar, uma em cada lado do prédio. Ao pé da porta é que foi colocado o tabuleiro. Eu, o Monstrinho, o Iran, o Moisés, um dos gêmeos e outros que não me lembro, todos lá para conhecer a novidade. Não sei como fomos convencidos àquilo, acho que foi só para ter mais alguma para fazer. Ou idiotice mesmo.

Colocá-se um copo de vidro no centro do tabuleiro, com a boca virada para baixo. Há uma variante que usa um pedaço de madeira em forma de seta. Os participantes colocam o indicador sobre o copo. Aguarda-se. O copo começa a se mover, após se fazer alguma pergunta. Claro, qualquer um pode conduzir o copo, não há dúvida. Só que com alguma experiência ou malícia se pode perceber quem é o condutor. Sempre há alguém mais experiente ou malicioso, porém, e pode se dar de não se perceber a fraude, o que dá uma certa graça à coisa. Tolices foram perguntadas até que se entendesse como funcionava a coisa. Rapidamente se descobriu como mover o copo, só que era difícil fazê-lo se outro alguém tivesse a mesma idéia. Daí era um jogo de paciência até o outro desistir, para então responder, letra por letra, à pergunta. Lá pelas tantas o gêmeo perguntou se haveria uma morte ali. Sim, em breve, professor. No dia seguinte soubemos que uma professora falecera.

Ele sabia disto porque era vizinho dela e já estava morta naquele dia mesmo. Só que o comunicado só se fez no dia seguinte. Um fato ignorado por todos até então, hoje só eu e o Moisés sabemos disto. Bom, só eu, então. Foi o bastante para dar crédito à idéia de que realmente havia uma ligação deles com o outro mundo. Coincidências inexplicáveis são sempre um atrativo para o misticismo e um tremendo dum jeito de arrancar até a merda do cu dos trouxas. De minha parte fiquei impressionado, porque era muita coincidência e coincidências sempre me atraíram porque quase nunca são coincidências. Quase nunca. Tinha alguma fé no misticismo cristão, mas não cria em espíritos e coisa e tal. Tentei entender, mas não havia como. Era coincidência, eu sabia, e concluí isto após pensar muito sobre o assunto, mas era uma coincidência impressionante.


A Morte de Craig Wilson – capítulo 3, parte 3 de 5

9 janeiro, 2009

Não sei que merda o Moisés foi fazer lá. Era muito, muito preto. Olhos claros, de uma cor indefinível, intermediária entre o cinza e o verde. Uma enorme cabeleira desgrenhada, castanha, escura, sei lá eu se da cor, do queimado do sol na moleira ou de sujeira mesmo. Um narigão bem africano. Orelhas miúdas. Mistérios da genética. Feio, feio, mas lazarento de feio, como a gente dizia: mais feio que bater na mãe por causa de mistura. Mais marcante que sua feiúra só mesmo sua fé, que não deixa de ser outro tipo de feiúra. Protestante, lia a bíblia o tempo todo, orava antes de qualquer coisa, comer, entrar, sair, provas, trabalhos, subir no ônibus, descer do ônibus, mijar, cagar, vomitar. Antes de vomitar eu não sei, mas depois tenho certeza porque eu vi. Sua casa não tinha televisão ou rádio. E não era tempo de computadores e celulares, se é que você consegue imaginar o que seja isso. Para evitar a contaminação com as coisas mundanas, dizia. Mesmo assim, seu comportamento era mais ou menos normal, jogava bola conosco e tudo o mais. Doente, vivia vomitando, com sangue algumas vezes. Na sala de aula, no corredor, na biblioteca e até na direção. Na piscina, nunca. O sagrado faz mesmo milagres. Desconfio que acreditava mesmo que espíritos seriam invocados, malignos no entender dele, e que desejava enfrentá-los e vence-los. Conversamos muito sobre a bíblia. Foi ele o primeiro a me dizer que nunca nenhum apóstolo escrevera uma linha sequer, exceto Paulo, ainda assim em péssimo grego. Primeiro e último protestante que tocou neste assunto. Não é importante quem escreveu, eles contaram a história de Cristo, porque o conheceram, e a sabedoria da palavra, seu efeito no coração dos homens, é a prova da divindade; disse-me. A palavra é divina, continuou ele, a interpretação é humana, como é humana a interpretação das palavras frutos da interpretação da palavra, por isso as falhas da doutrina são só provas de que falhos são os homens, mesmo assim, mesmo com as falhas a palavra divina salva as almas, por isso sei que quando puder entender de modo direto a palavra que vem da boca dele, quando vier a revelação, então não correrei mais nenhum risco diante do inimigo, afinal, se a doutrina falha já salva, a doutrina pura me tornará invencível, quanto mais perto dele, Glória, mais forte se fica, quanto mais forte se fica nesta vida, maior é a prova de que ele está por perto, cada obstáculo removido me prova que está perto, por isso creio e creio, nossa própria força é a prova que mantém a nossa fé, ele existe, por isso creio, mas ele não existe porque creio. Puta que pariu, um porra dum fedelho horrível na merda da escola disse isso. E nêgo formado leva a coisa ao pé da letra, desde o papo da costela até a abertura do mar vermelho e o dia em que a Terra parou e tudo o mais. Burrice tinha que ser crime mesmo. De certa forma, ele adiou, sem o saber, minha virada, o que me foi muito bom no final das contas, mas eu não cria que se pudesse chamar espíritos naquele jogo. Até ali.

Começamos a jogar corriqueiramente, porque era relativamente interessante. Todos os dias, meia hora, uma hora, conforme a disponibilidade. Nem sempre havia um gêmeo junto. Passado uns dias, acontecia de, por vezes, o copo dizer que alguém ali deveria voltar no dia seguinte, o que era chover no molhado, mas impressionava. É igual guitarrista supersônico, o cara não ta fazendo porra nenhuma, só subindo e descendo escala, mas mesmo assim impressiona e serve pra encher lingüiça. Não me lembro se isto se dava só com algum gêmeo presente. Em alguns dias estávamos viciados, nem sei exatamente porquê. Um dia o Sapo apareceu de braço quebrado. Esse aí tinha mesmo cara de sapo, por isso o apelido era justificável, até porque ninguém conseguia lembrar do seu nome, Ilmonér, com acento mesmo, o que, obviamente, era uma tremenda duma vantagem. Dois dias antes ele fora chamado pelo copo a estar ali no dia seguinte. Não foi, sabe-se lá por qual razão. Quebrou o braço em casa, porque a geladeira caiu-lhe em cima ao mudá-la de lugar com a mãe, numa dessas constantes mudanças de casa de pobre, que deve ser um modo de tentar disfarçar o cheiro da merda, mas no fim é como a mulherada: troca e troca o corte e cor de cabelo e no fim todo mundo só olha mesmo é pra bunda, ou seja, vira e mexe e continua casa de pobre. Foi aí que iniciamos um caminho sem volta. No mesmo dia em que ele apareceu de gesso, o Monstrinho recebeu o convite do copo. O camaradinha já vinha impressionado dia após dia, tava vidrado, cada vez mais assustado e cada vez mais louco pelo bagulho, verdadeira mulher de malandro. Aí pirou de vez.

Naquela noite graduei-me em hipocrisia, o que é fundamental porque esse é um dos pilares da civilização, se um homem quer ser um porra dum cidadão respeitável, tem de ser hipócrita, mas pra valer, carregar tanta, mas tanta hipocrisia que faça renderem seus bagos. O bom é que foi com uma mulher, uma das gostosas! E a mais gostosa! Que era um troço de linda e isso não tem nada a ver com a bosta da memória afetiva. Não mais pegava o ônibus no horário de sempre, junto com o pessoal. O ponto do busão ficava a um quilômetro, dez quadras, algo assim. Como era o sistema de ponto final, não podia pegá-lo onde descia, só mais à frente. Em função do meu horário irregular, aconteceu de nos encontrarmos vez ou outra ali no ponto, daí porque comecei a esperar um pouco mais. No começo, esperava pouco, depois comecei a ser mais tolerante. Um, dois, ás vezes cinco ônibus, o que dava mais de uma hora. Não é segredo que coincidências podem ser providenciadas. Às vezes mesmo que se saiba não estar diante de uma, a impressão mantém-se boa, como um truque de mágica. Ela estudava em um colégio em ponto mais central, de igual distância até ali, porém para outro lado. Saía da aula e pegava os irmãos menores na escola, por vezes levando-os a algum médico ou dentista. Começamos dizendo oi, falamos da fila, do cansaço, até que já íamos até o fim conversando, sem parar. Nesse dia, ao passarmos pelo portão de entrada, encontramos duas amigas suas. Já as tinha visto, eram mais velhas, visitavam-na vez ou outra e uma delas também era jeitosinha, com uns melões de primeira, grandes, mas do jeito certo, ou seja, duros. Pela primeira vez acompanhei-a até seu apartamento, bem, na verdade, até a entrada de seu bloco. Este era o último da fileira, uma abaixo da minha, mas cuja escada de ligação não atendia o meu bloco, que era o penúltimo da respectiva fileira. Do quarto podia ver as janelas do seu, a do quarto, a da cozinha, a pequena do banheiro. Caminhávamos lentamente. As três freqüentavam a mesma igreja. Tentaram me convencer a visitar e a freqüentar. As duas amigas deixaram bem claro que poderíamos ir juntos, eu e ela, aproveitando a carona ou tomando o mesmo ônibus. Estavam claramente se aproveitando da situação, estavam cafetinando a amiga para comprar minha alma. Falavam das várias atividades, viagens, acampamentos, festas. Perceberam meu interesse, apesar de eu nunca ter dito ou feito nada que pudesse dar a entender alguma malícia, que na verdade não existia. As duas não falaram sobre Deus ou fé, só deixaram claro que ir à igreja era uma oportunidade de estar com ela. Pensavam estar me enganando, elas eram hipócritas. Ainda não tinha nada contra religiões e igrejas, freqüentávamos antes de morar ali, cria vagamente na mística cristã, mas não me atraía simplesmente. Chegamos ao bloco dela, ia me despedir quando perguntaram se eu conhecia o Luis. Claro, fazia parte da nossa turma, estávamos sempre juntos. Disseram então que há pouco estavam na casa dele, ministrando um curso para a família. Ele iria no próximo domingo. Apelo à insegurança. Não pensei deste modo, mas percebi tratar-se de uma jogada, cristalino para mim, eu sabia o que era, estavam criando um falso adversário, por mais que fosse improvável, era uma possibilidade, o que elas diziam nitidamente era: se você não pegar essa bola, outro vai chutar pro gol. Os irmãos pediram para entrar logo. Disse que iria, desde que minha mãe não dissesse o contrário, uma tolice. Terminei dizendo que precisamos buscar a Deus enquanto é tempo e devemos aprender a palavra para não nos perdermos nas coisas do mundo. Vi a hipocrisia e a aceitei, abracei e me lambuzei porque é preciso fazer o serviço completo, porra. Pelos poderes legalmente a mim investidos, eu o declaro bacharel em hipocrisia. Depois virei PhD, mais, muito mais, na verdade. E isso deve ser o que há de melhor em mim.


A Morte de Craig Wilson – capítulo 3, parte 4 de 5

9 janeiro, 2009

Fui embora pela grama, passando rápido por trás do apartamento dela para que não me vissem, sabia que seus pais não gostavam que ela mantivesse contato com muitas pessoas por ali, não havia dúvida de que nossa fama já chegara até aquele canto. Não sabiam do seu namoro, que durou pouco, que nem era namoro, simplesmente estiveram juntos uns dias, porque ele tinha lá um jeito de galã, mas daqueles mexicanos, que era o que mais revoltava, mas enfim, gosto é gosto e para o momento não nos importamos com muitos detalhes. Não havia formulado um pensamento em termos de hipocrisia, mas fora isto claramente o que acontecera ali, quem quiser dourar a pílula, fique à vontade, dentro tem a mesma merda. Eu pensava que tudo fora uma jogada das duas, que se aproveitaram da situação. Isto era claro. Quando deixei o pensamento fluir me veio a idéia de que ela poderia ser a responsável por aquilo. Claro que esta idéia me animou sobremaneira. Concluí, porém depois de pensar bastante, que não, que quando muito pedira às duas para fazer o convite, mas só para me levar à igreja mesmo, nada mais. Ela não teria como imaginar aquilo tudo, pensei. Na época eu ainda não sabia que mulheres já nascem sabendo este tipo de coisa. Não que ela tivesse participado ativamente da elaboração do plano, porque isto não ocorreu realmente, mas sem dúvida poderia tê-lo feito, porque o talento necessário já o tinha de nascença. Sem esquecer do fato de que toda mulher é bruxa, então pode ser que elas tenham combinado tudo num segundo, meio que telepaticamente ou seja lá como for que as bruxas fazem essas coisas.

Nisto eu já estava há quatro anos morando ali e já se fazia dois da suposta morte do Astronauta, meu terceiro ano naquele colégio. Já de há muito não havia mais filas do leite, nem joguinhos e o último racionamento sério fora um ano antes. Apareceram, então, as mãos vermelhas nos muros. Eu falei que foi mais ou menos por aí que começou a fodeção geral.

Pela manhã fui procurar o Luis. Era verdade. Sua mãe começara a freqüentar aquela igreja e decidira, à revelia, que toda família seria batizada. Fora pego de surpresa e tava fodido de raiva.

Ele não tinha nenhum interesse sério nela, exceto que a achava puta gostosa, como todos. Ela se tornara foco de nossas atenções, mas nada sério, só interessava saber quem era. Todos faziam um comentário ou outro sobre ela, em termos bem juvenis e relativamente chulos, mas com o tempo se instaurou um certo pudor sobre isto, daí em diante só se brincava sobre esdrúxulas declarações de amor: a beleza é mesmo um troço do capeta, faz cada uma. Ninguém tinha interesse mesmo, um ou outro até talvez sonhasse, mas realmente não havia ninguém com interesse. Quase ninguém. Já que é pra sonhar, vamos sonhar alto, caralho.

À tarde, mais uma rodada do jogo do copo. O Monstrinho não foi. Não prestei atenção em aula alguma. Fiquei o dia inteiro pensando se ela sabia ou não que as amigas fariam o convite naqueles termos. Ingenuidade é sempre um perigo. Pegamos o mesmo ônibus no fim da tarde. Conversamos a viagem toda e nos despedimos na entrada de seu bloco. Não fui embora pela grama, dei a volta mesmo, porque eu estava me sentindo um rato na ratoeira e sem ninguém em casa para me matar de vez.


A Morte de Craig Wilson – capítulo 3, parte 5 de 5

9 janeiro, 2009

No outro dia o Monstrinho foi à aula. Estava mais irrequieto que o normal, por um motivo bem óbvio para nós, ainda que alguém pudesse dizer tratar-se de uma bobagem. Não era exatamente uma bobagem, porque afinal ele cria que algo de muito ruim poderia lhe acontecer. Se há pessoas que se sentem mal porque seus times perdem, se há pessoas que se deprimem com a perda de um objeto querido, se há pessoas que sonham com anjos, então é normal que alguém se apavore ante a possibilidade de contrariar espíritos, especialmente diante de circunstâncias impressionantes, como era o caso ali. Faltara no dia anterior porque sua mãe o obrigara a levar sua vó ao médico e ficar em casa cuidando dela, porque estava doente, diabética, quase cega, agora com hipertensão e uma dor de estômago inexplicável. Difícil argumentar que a saúde da senhora era menos importante que uma brincadeira tola, além do que era ordem da mãe, se a mãe mandara ele faltar era porque não se podia mesmo deixar a velha sozinha, por isso não lhe restou outra alternativa. Ao final do dia, ele mesmo estava doente, sem fome, sem sede, com febre e trêmulo, fosse o que fosse, assustou-o ainda mais, mas passou pela manhã. Não via a hora de jogar para saber das conseqüências e não falava de outra coisa, chegou mesmo a interrogar o Iran durante a aula de matemática, uma ousadia e tanto. Queria saber quais poderiam ser as conseqüências, se iria morrer, se alguém já havia morrido, se deveria trazer alguma oferenda, se talvez fosse o caso de um sacrifício. Próximo dele, eu já me irritava com aquele choro, por isso mandei-lhe um bilhete dizendo que por enquanto ele iria apenas receber uma advertência na direção, já a terceira para ele. Vi que ficou branco ao ler, fora muita crueldade, pois ele não poderia nem desabafar, estava entre a frigideira e a panela de pressão. Creio que ele é agora um expert em eternidade, mas eis que finalmente tocou o sinal e saímos para uma aula vaga. Subimos imediatamente ao local de sempre. É um mistério como nunca ninguém nos incomodou ali, o que só aumentou o impacto de tudo nos dias seguintes. Um puta dum lugar pra se trocar uns amassos e nós moleques ali brincando e jamais vimos nem ouvimos ninguém se aproximar.

E bum. Mas bum mesmo, uma tremenda duma explosão. Eis que o copo nos diz que o Monstrinho iria morrer. Sem mais nem menos. Sentamos e lá veio a mensagem, de supetão, o copo não rodeou, falou no jeito macho de falar. Tivemos de segurar o pobre, depois de nos recuperarmos de seu berro. Tapei a boca dele e os outros seguraram pernas e braços. O diabo é que ele vomitou em jorro em cima de nós. Fiquei todo emporcalhado. Não sei o que ele comeu no almoço, mas fedia mais que merda de quando se enche o rabo de vinho ruim. Já tinha visto-o comer, seu apetite era mesmo monstruoso. Uma vez comeu quatro baurus seguidos, com duas cocas e ainda pediu um pedaço para mim. E esta voracidade toda certamente havia se manifestado no seu almoço. Certamente se manifestou em mim. Juro que eu lembro daquele fedor até hoje e nem de longe acho que isso seja uma vantagem: certas coisas é melhor ficarem enterradas.

Do nada alguém grita que o copo sumira. E o tabuleiro também. Ninguém havia levado bolsa, isso eu sei. Como sumiu, até hoje não sei. Perplexos, só voltamos à realidade quando o gêmeo soltou um grunhido, na verdade era mais um guincho. Voltamo-nos a ele. Vi um sujeito pálido, com os olhos virados, suando e com a língua para fora. Tive a impressão de que suas orelhas estavam mais pontudas que o normal. Estancou em posição de sentido, ergueu a cabeça e caiu como um pedaço de pau, reto. Meteu a testa no chão com tanta força que ouvimos o estalo do osso frontal se quebrando. Eu nada sei, mas houve mesmo o estalo, um barulho feio da porra. Foi acometido de tremores e encolheu-se em posição fetal. Ninguém falava nada. E que merda se poderia dizer numa hora daquelas? Espumou pela boca e de um salto agarrou o pobre Monstrinho e começou a beijá-lo. Impressionante, foi como ler uma história em quadrinhos, não houve uma seqüência de atos, rápido, instantâneo, agora caído, depois grudado no outro, uma agilidade sem igual. Com o impacto do pulo o beijado caiu. O gêmeo estancou e caiu de costas, duro, reto. Espumava uma gosma vermelha. Moisés se agachou, pegou-o pelos braços e começou a gritar coisas como “Vade retro, Satanás!”, “Sangue de Jesus tem poder!”, “Saia em nome de Cristo!”, “É Deus quem manda!” e por aí afora. Ele vai morrer, murmurou o possuído, ao que o pastor mirim retrucou que Deus não permitiria. Ato contínuo recebeu um murro no nariz. Quebrou na hora, ouvimos o barulho, o sangue jorrou a valer, coisa de cinema. E não parou aí, o Satânico começou a espancar o pobre, com tal fúria que nunca mais vi igual. Tentamos separar, mas era impossível, quem chegasse perto levava o seu, com tanta força que caía ao chão no ato. Era uma máquina de dar porrada, um espancador atômico. Ele vai matar todo mundo, disse o infeliz convocado. Saiu correndo. Estancamos de vez. Daí que a cena agora era a seguinte: um apanhando, o outro louco ou possuído e batendo, o outro enlouquecido correndo e nós, os boquiabertos, inertes no meio de toda aquela situação fodidamente fodida. E que ia foder ainda mais. O transe de Iran acabou e ele pulou com os dois pés nas costas do possesso. Daí saí do transe também e fui atrás do Monstrinho.

Corremos como loucos pelos corredores. Chegamos ao pátio, ele na frente e eu atrás. Tomou o caminho da saída. Em segundos estávamos pulando os degraus da escadaria lateral. Não sei o que pretendia, não havia como sair por ali, o portão estaria trancado. Desceu em um só pulo a parte da escada que levava ao portão de entrada. Escondido na volta do muro, lá embaixo, estava outro gêmeo. Quando cheguei esbaforido, o vi. A mesma roupa do outro. A mesma gosma vermelha na boca, os mesmos olhos virados, a mesma fúria e a mesma força. Acertou o Monstrinho antes mesmo que este terminasse o grito que sua boca e olhos arregalados anunciavam. Caiu de costas, batendo a cabeça no muro. O raivoso olhou para mim, eu olhei para Monstrinho, caído, desmaiado. Encarei o outro. Poderia descrever aquele instante como tenso, se fosse um duelo, um estudando o outro. Se alguém nos visse, teria exatamente esta impressão. Mas não é verdade, de forma alguma. Simplesmente estava com medo e com raiva. Estava claro que iria levar o meu também. Quando baixei os olhos vi que estava enganado. Na mão direita, era bonito, uma suástica vermelha, brilhante, metálica, um belo punhal. Fitei seus olhos, não mais virados, mas vidrados, um atestado de psicopatia, sociopatia e tudo o mais. Virei as costas. Subi as escadas em passo normal.

Eu tremia de raiva, mas, vá tomar no cu, eu é que não ia encarar um doido daqueles numa situação daquelas com uma puta faca daquelas. Amigos, amigos, couro à parte, sinto muito. Fui-me. Escafedi-me. Dei no pé. E antes de saber o que viria a acontecer ali embaixo com os dois, apesar de previsível, ainda tinha mais um mar de merda para atravessar. Como sempre.


Correndo atrás

9 janeiro, 2009

Tirado do blog Abrigo na Net:

Adaptei a historinha abaixo:

B.B. King estava dando um show numa casa noturna na Flórida. No intervalo, seu empresário lhe comunica: – B.B.,tem um cara aqui pedindo pra fazer uma canja, você deixa o rapaz? B.B., então, com sua conhecida simpatia e sua cara de bonachão, respondeu: -Claro que pode!

Bom, o tal guitarrista era Yngwie Malmsteen. Ele foi anunciado pelo próprio B.B., que sentou-se na primeira fileira de cadeiras em frente ao palco. A banda começou um blues bem lento, ‘ta ta dum tata’. E o gorducho Yngwie começou bagunçando na guitarra: aquele “tutututututututtrrururururrrurururrurur” infernal, rápido como o demônio, mil solos mirabolantes, alavancadas, ainda improvisou um two-hands, slides e muito mais.

Enquanto isso, B.B. só ali, de ladinho, batendo a mão no b.p.m. da banda; e o sueco destilando arpejos e muitas notas, deitando no chão, parecia que as mãos iam sair fora dos braços de Yngwie.

No final, o empresário exclamou: -Nossa! Ele toca muito, nunca vi nada igual. E cobriu Yngwie de elogios. Por fim, o empresário perguntou pra B.B.:- E aí, o que achou dele?

B.B. deu uma risada marota e soltou: -Coitado do rapaz, ficou correndo pelo braço da guitarra que nem um louco procurando as notas… EU JÁ AS ACHEI FAZ TEMPO… rrsrs

SÃO ESSAS AQUI Ó: “TURUTU TU RU”