Não é tanto onde você quer chegar, é como você pode chegar. Ou tentar chegar. Dizem que nada é certo na vida, mas isso é bobagem, no que nos interessa há certezas aos montes na vida e uma delas é essa: ninguém vai ao céu a pé. Nem que seja de carona, ou você voa de algum modo, ou não chega lá. Não chega.
Foi lá pelas quatro e meia da madrugada dum dia lazarento de frio dum abril quando se deu a tragédia. E a culpa foi toda dele, digam o que quiserem. Muitas horas antes ele estava já cansado de limpar e polir sua prótese metálica, ganha do pai pela aprovação num vestibular fajuto dum curso de segunda numa faculdade particular de terceira. Era um carrão, não o carrão, mas sem dúvida era um brinquedo invejável a qualquer um que tivesse de suar para compra-lo, como nem de longe esse era o seu caso, não estava muito satisfeito e estava emburrado, mas mesmo assim tinha já tinha percebido que sua vida mudara para melhor. Fala-se aqui de mulheres, quer dizer, pequenas aborrescentes. Ou pelo menos ele achava que tinha melhorado, o que dá na mesma em algum estranho sentido que não vem ao caso, mesmo porque nem tudo que faz sentido é verdade.
E a preparação era para uma outra festa na casa dum outro amigo ricaço, para a qual foram convidadas várias riquinhas de um metro e quarenta e cinco, cinqüenta, de sessenta para cima só uma ou outra, porque esse já era tamanho para um museu, muito embora nenhum deles jamais tivesse conhecido um, coisa só aceitável nas empregadas das mansões, ou suas filhas, quando muito. Mas eis que surge um cidadão sardento num carrão que, esse sim, ah esse sim podia ser chamado de o carrão. Encosta logo à frente, manobra por uns três minutos, para e desce. Deu a notícia num tom de voz que oscilava entre Tim Maia e Humberto Gessinger. Trocaram umas cento e vinte e seis frases de valor apenas antropológico e despediram-se. Adolescentes são como políticos, falam muito sem dizer nada e estão sempre pensando em foder alguém.
Largou imediatamente o polimento e entrou em casa pisando duro e batendo portas. Ninguém ligou. Trancou-se no quarto e ficou sentado emburrado, fazendo bico como uma mocinha, um baita dum estereótipo. O causo era que a fulana ia à festa, recém-chegada da Inglaterra, onde fora fazer um intercâmbio, era realmente uma delícia e matar por ela só seria mesmo crime na cabeça da mulherada invejosa. Outro estereótipo a mocinha, mas que era linda, fodidamente linda, lá isso era. Ah, claro que ela era polaquinha, do cabelão escorrido, dos penduricalhos, da maquiagem caríssima usada sem maiores critérios, do peitão sempre à mostra nos vestidinhos justos de preços diretamente proporcionais aos decotes, cinturinha de Barbie, aquela coisa toda, tudo que você pode ver dando uma volta num shopping center, só que num nível absurdo, como se o Eddie Van Halen trocasse todo seu talento por um corpo de mulher.
Ela ia à festa. Mas é óbvio que uma mulher daquelas jamais daria bola prum cara num carro como o dele, de jeito nenhum, aquilo não servia nem para levar estrume para seus lírios, se ela os tivesse.
Foi aí que teve a idéia mais original do mundo: pegar o carro do pai escondido. O tipo de coisa que tem a beleza e a sutileza duma cara cheia de espinhas. O arroubo de genialidade foi demais para ele, não se conteve e pôs para fora todo o brilho de sua conclusão: Que se foda! E não foi de qualquer forma que o fez, não, foi dum modo tal que fez aquele Eureka, aquele um, parecer um arroto de bebê. Diria que o pai estava comprando um melhor, como se houvesse, e depois, que o mesmo tomara por ter emprenhado a empregada ou sua filha a qual, obviamente, fora subornada a arrancar fora a criança.
Não havia carro melhor, de jeito nenhum. Era o Al Pacino dos carrões.
E nem foi difícil, porque nunca é difícil fazer uma merda bem fedorenta. Teve a sorte de o pai receber uns três convidados e uns quinze aproveitadores naquela noite. Fizeram um churrasco com carne supostamente dum lagarto asiático raro e tomaram uísque de dois salários mínimos a dose a tarde toda. Deu uma grana para a empregada tomar banho de porta aberta e foi lá dizer a novidade ao velho. Dito e feito, o mesmo já chegou tirando a roupa e por ali ficou o resto da noite, até ser acordado pela polícia horas depois. Não que tivesse feito muita coisa, mas isso não interessa. E a mãe ficou entretida com as amigas, as esposas aproveitadoras dos aproveitadores, garrafas de vinho, um tanto de valium e alguma coisa latino-americana de nome indígena impronunciável para ela.
Chegou na festa em marcha reduzida para fazer o motor roncar mais alto, já que não dava para chegar a mais de cem naquele jardim. Então chegou a cem só. Não largou o carro, ficou um bom tempo manobrando, mesmo porque não conseguia se entender com a ré puta potente. Nem com o volante fodidamente esportivo, ou seja, duro como o pau de qualquer homem que goste de ser homem vendo a Scarlett Johanson em Match Point. Era um carro para macho adulto e aquele filhote mimado não conseguiria se tornar um nem em quinhentos anos, não por aquele caminho. Sem que ele ou a maioria dos presentes se desse conta do ridículo da coisa, fez lá suas firulas exibicionistas e finalmente largou o possante. Surtiu o efeito desejado, já que aquelas fêmeas nada entendiam de carros, só de dinheiro. Elas viram o que ele precisava que vissem: estava ao volante de um carrão de filmes. Mas o carro não era parte dele, de jeito nenhum, razão pela qual foi de incalculável ajuda a burrice generalizada dos convivas, porque qualquer ser civilizado com mais de três neurônios funcionais sabe que não é bom negócio usar algo que atraia a atenção mais do que a própria pessoa. Na verdade, não se sabe até hoje se havia algum desses lá naquela noite.