A HORA MALDITA – parte 1 de 10

5 junho, 2009

Não é tanto onde você quer chegar, é como você pode chegar. Ou tentar chegar. Dizem que nada é certo na vida, mas isso é bobagem, no que nos interessa há certezas aos montes na vida e uma delas é essa: ninguém vai ao céu a pé. Nem que seja de carona, ou você voa de algum modo, ou não chega lá. Não chega.

Foi lá pelas quatro e meia da madrugada dum dia lazarento de frio dum abril quando se deu a tragédia. E a culpa foi toda dele, digam o que quiserem. Muitas horas antes ele estava já cansado de limpar e polir sua prótese metálica, ganha do pai pela aprovação num vestibular fajuto dum curso de segunda numa faculdade particular de terceira. Era um carrão, não o carrão, mas sem dúvida era um brinquedo invejável a qualquer um que tivesse de suar para compra-lo, como nem de longe esse era o seu caso, não estava muito satisfeito e estava emburrado, mas mesmo assim tinha já tinha percebido que sua vida mudara para melhor. Fala-se aqui de mulheres, quer dizer, pequenas aborrescentes. Ou pelo menos ele achava que tinha melhorado, o que dá na mesma em algum estranho sentido que não vem ao caso, mesmo porque nem tudo que faz sentido é verdade.

E a preparação era para uma outra festa na casa dum outro amigo ricaço, para a qual foram convidadas várias riquinhas de um metro e quarenta e cinco, cinqüenta, de sessenta para cima só uma ou outra, porque esse já era tamanho para um museu, muito embora nenhum deles jamais tivesse conhecido um, coisa só aceitável nas empregadas das mansões, ou suas filhas, quando muito. Mas eis que surge um cidadão sardento num carrão que, esse sim, ah esse sim podia ser chamado de o carrão. Encosta logo à frente, manobra por uns três minutos, para e desce. Deu a notícia num tom de voz que oscilava entre Tim Maia e Humberto Gessinger. Trocaram umas cento e vinte e seis frases de valor apenas antropológico e despediram-se. Adolescentes são como políticos, falam muito sem dizer nada e estão sempre pensando em foder alguém.

Largou imediatamente o polimento e entrou em casa pisando duro e batendo portas. Ninguém ligou. Trancou-se no quarto e ficou sentado emburrado, fazendo bico como uma mocinha, um baita dum estereótipo. O causo era que a fulana ia à festa, recém-chegada da Inglaterra, onde fora fazer um intercâmbio, era realmente uma delícia e matar por ela só seria mesmo crime na cabeça da mulherada invejosa. Outro estereótipo a mocinha, mas que era linda, fodidamente linda, lá isso era. Ah, claro que ela era polaquinha, do cabelão escorrido, dos penduricalhos, da maquiagem caríssima usada sem maiores critérios, do peitão sempre à mostra nos vestidinhos justos de preços diretamente proporcionais aos decotes, cinturinha de Barbie, aquela coisa toda, tudo que você pode ver dando uma volta num shopping center, só que num nível absurdo, como se o Eddie Van Halen trocasse todo seu talento por um corpo de mulher.

Ela ia à festa. Mas é óbvio que uma mulher daquelas jamais daria bola prum cara num carro como o dele, de jeito nenhum, aquilo não servia nem para levar estrume para seus lírios, se ela os tivesse.

Foi aí que teve a idéia mais original do mundo: pegar o carro do pai escondido. O tipo de coisa que tem a beleza e a sutileza duma cara cheia de espinhas. O arroubo de genialidade foi demais para ele, não se conteve e pôs para fora todo o brilho de sua conclusão: Que se foda! E não foi de qualquer forma que o fez, não, foi dum modo tal que fez aquele Eureka, aquele um, parecer um arroto de bebê. Diria que o pai estava comprando um melhor, como se houvesse, e depois, que o mesmo tomara por ter emprenhado a empregada ou sua filha a qual, obviamente, fora subornada a arrancar fora a criança.

Não havia carro melhor, de jeito nenhum. Era o Al Pacino dos carrões.

E nem foi difícil, porque nunca é difícil fazer uma merda bem fedorenta. Teve a sorte de o pai receber uns três convidados e uns quinze aproveitadores naquela noite. Fizeram um churrasco com carne supostamente dum lagarto asiático raro e tomaram uísque de dois salários mínimos a dose a tarde toda. Deu uma grana para a empregada tomar banho de porta aberta e foi lá dizer a novidade ao velho. Dito e feito, o mesmo já chegou tirando a roupa e por ali ficou o resto da noite, até ser acordado pela polícia horas depois. Não que tivesse feito muita coisa, mas isso não interessa. E a mãe ficou entretida com as amigas, as esposas aproveitadoras dos aproveitadores, garrafas de vinho, um tanto de valium e alguma coisa latino-americana de nome indígena impronunciável para ela.

Chegou na festa em marcha reduzida para fazer o motor roncar mais alto, já que não dava para chegar a mais de cem naquele jardim. Então chegou a cem só. Não largou o carro, ficou um bom tempo manobrando, mesmo porque não conseguia se entender com a ré puta potente. Nem com o volante fodidamente esportivo, ou seja, duro como o pau de qualquer homem que goste de ser homem vendo a Scarlett Johanson em Match Point. Era um carro para macho adulto e aquele filhote mimado não conseguiria se tornar um nem em quinhentos anos, não por aquele caminho. Sem que ele ou a maioria dos presentes se desse conta do ridículo da coisa, fez lá suas firulas exibicionistas e finalmente largou o possante. Surtiu o efeito desejado, já que aquelas fêmeas nada entendiam de carros, só de dinheiro. Elas viram o que ele precisava que vissem: estava ao volante de um carrão de filmes. Mas o carro não era parte dele, de jeito nenhum, razão pela qual foi de incalculável ajuda a burrice generalizada dos convivas, porque qualquer ser civilizado com mais de três neurônios funcionais sabe que não é bom negócio usar algo que atraia a atenção mais do que a própria pessoa. Na verdade, não se sabe até hoje se havia algum desses lá naquela noite.


A HORA MALDITA – parte 2 de 10

5 junho, 2009

Passou pela porta tipicamente empertigado. Ignorou com prazer as pequenas aproveitadoras que se avolumavam próximo aos garçons e foi direto a uma roda de cabelos loiros. E espinhas, puta que pariu, muitas espinhas. Eles enfiam coca no nariz a noite toda todas as noites, fumam erva bem fedida, bebem os destilados mais caros, usam roupas caras, perfumes da moda e toda sorte de mirabolâncias cosméticas, mas nada, absolutamente nada, supera a presença do pó de arroz na cara das mocinhas, uma verdadeira massa corrida para humanos. Os boyzinhos disfarçavam de vários modos, menos drásticos, mais pontuais, mais ridículos.

Ficou ali dois minutos, depois foi para outra roda. Outra e outra e outra, a noite toda, sem saber ao certo o nome da maioria das pessoas que via. Obviamente, não dava a mínima.

Chegou, até que enfim, na roda onde estava a Fulana. Se ela não fosse tão soberba e não fizesse parte duma nata de ricaços, pode crer que ele estaria de pau duro. Mas ela intimidava qualquer um ali. E sabia disso. Como tantas outras, adorava fazer de otário qualquer um que sonhasse com ela. E, como era a mais poderosa das adolescentes ricaças, o fazia com um sadismo todo particular, único, incomparável. Um amigo o apresentou como o “cara do carrão”, especificando o modelo. Ela sacou tudo numa olhada rápida. Toda a armação, merda fede, entende? Além disso, ela era mulher, porra! Elas sabem tudo, sempre e sempre, mesmo aos dezessete anos. O idiota não se tocou que ela se tocou e ela se tocou disso. Mulher, porra! Sabe tudo. E, como crueldade não tem limites, ela sacou um elefante da cartola. Perguntou se essa nova geração tinha parado de encurtar sistematicamente a transmissão como as anteriores. E ele não sabia, mas disse que sim, o que era mentira e ela fez questão de desmascarar com um comentário para lá de humilhante: “o do filho do Lord Pennyworld é igual e tem transmissão mais curta que a do de seu pai”. E continuou dando detalhes do carro e do seu relacionamento com o filho dum nobre inglês. E o imbecil foi fazendo cada vez mais força para manter sua soberba e parecer menos ridículo, mas não adiantava, coitado, competia com uma mulher no terreno dela. Quando a coisa já estava num ponto tal que até mesmo uma intrusa aproveitadora ria dele, ele achou mais negócio ir atrás de algo para fazer e anunciou que iria dar uma cheirada. Mas ela ainda tinha mais planos para ele, pobre estúpido.


A HORA MALDITA – parte 3 de 10

5 junho, 2009

Encontrou um amigo entretido com uma novata da turma, encontrada trabalhando numa loja de departamentos. Puxou o cara de lado, cochichou algo e ficou tudo combinado rapidamente. Ele precisava de algo que fizesse esquecer a vergonha que acabara de passar. Trouxeram-lhe champanhe a rodo, enquanto bebiam vagarosamente o seu uísque, só fingindo trocar o copo na passagem do garçom. Ela fora convidada pela irmã do cara. Rá, rá, rá. Pela irmã do cara, putz, santa ingenuidade Batman. Pobre moça pobre. Ainda não estava fodida, mas em breve estaria duma maneira inesquecível. Os irmãos trocavam pobres e remediados entre si, os sacanas. Ela arrumava umas gostosinhas para ele e ele uns bem dotados para a auto-declarada ninfomaníaca. Com muito orgulho, diga-se de passagem. Vieram as champanhes. E a maconha. E a coca. A heroína não deixaram chegar nem perto, precisavam dela excitada, de jeito nenhum satisfeita com a vida. E falaram de viagens, de astros que conheciam, de empresas que os pais tinham e tudo o mais que sabiam há tempos funcionava melhor que fórceps para abrir as pernas de meninas como ela. E então foram mostrar para ela os autógrafos que tinham. Num quarto lá em cima, claro. E chegaram num quarto com muita fotos nas paredes. E eles começaram a falar daquelas celebridades. E o amigo foi encostando nela. E a irmã veio rapidinho. E em minutos, enquanto o amigo ia se aproximando e tirando lascas da infeliz, a irmã ia se entretendo, juntando o útil ao agradável, com o idiota do carrão. E mais alguns minutos estavam todos nus. E, sim, a irmã deu na frente do irmão. E foi daquele jeito, como num filme pornô. A irmã terminou rápido e se vestiu antes que a outra percebesse. E então ficaram os dois ali com ela. E muito pó, meu chapa, muito pó.

Os filhos da puta deixaram a porta aberta e logo havia uma pequena platéia assistindo tudo. E ela não entendendo, mas não sabendo como sair dali sem parecer careta ou pobretona, como se fosse outra coisa. Até que estava gostando de ter a atenção de dois ricaços daqueles, sentia-se até poderosa, apesar de também sentir-se estranha por ficar com dois caras duma vez. Mas então eles decidiram que era hora deles se divertirem e foram para cima dela duma vez e ao mesmo tempo. E foi desse modo que ela pela primeira vez abriu as portas dos fundos. Revezaram-se entre frente e trás algumas vezes até que o amigo terminou o serviço atrás e saiu meio cambaleando pelo corredor afora, terminando de erguer as calças, ficando o do carrão por baixo dela, segurando-a firmemente pela cintura. Ato contínuo, veio um outro cidadão absurdamente bêbado tomar o lugar do outro que saiu. O diabo é que não agüentou o molejo, o vai e vem, e despejou tudo em cima dela, nas costas. Quer dizer, tudo que estava no seu estômago. Apesar da nojeira, em minutos ambos terminaram e saíram sem nem olhar para ela.


A HORA MALDITA – parte 4 de 10

5 junho, 2009

Foi ao banheiro, arrumou-se e voltou para baixo. Sentindo-se muito melhor, foi para a roda da fulana. E ela o esperava. Já estava sabendo do ocorrido e fingiu que não. Sem rodeios, ela disse que a festa estava uma merda e que bom mesmo seria dar umas voltas por ai, ao ar livre, umas voltas bem rápidas, fez questão de frisar. E o imbecil ofereceu para leva-la dar uma volta. E outros donos de carrões fizeram o mesmo com outras meninas e assim foram todos para a estrada.

Mas no estacionamento ela disse que não queria ser companhia, queria ser a estrela e perguntou a ele se ela era ou não uma estrela. E que poderia dizer o imbecil? De modo que ela foi dirigindo. E fazendo barbaridades. Ultrapassagens insanas, curvas impossíveis, emparelhando com os outros carrões na contra-mão. E assim foi até que, numa curva, acabou derrapando e rodando na pista e por muito pouco não se arrebentaram num barranco. Ele fez questão de tomar o volante e ela respondeu que ele era medroso. E riu um monte dele. O idiota só disse que iria fazer bem melhor que ela e ela deixou. E foi tentando supera-la. E meteu o pé na tábua mesmo. Com tudo.


E então correram do jeito que faz o diabo gozar. E chegando no fim da rodovia, no entroncamento com outra, havia uma curva embaixo dum viaduto, uma curva fechada que acabava na entrada da outra rodovia. E ele foi com tudo por ali, mas não teve braço para a curva e encostou na parede que sustentava o pequeno túnel sob o viaduto. O carro desgovernou, rodou e entrou de lado na pista adjacente. A mais de duzentos por hora. E bem naquele momento vinha um outro carro. Um carro simples, de família mediana, mais barato que o dele mesmo. E ambos foram parar mais de cem metros pasto adentro, do outro lado da pista. Antes de parar por completo, o carrão foi esbarrando em pedras pelo caminho, rompeu mangueiras, soltou faíscas do assoalho baixo, incendiou e seus ocupantes carbonizaram-se. Foram enterrados em caixões fechados. Pela primeira e última vez fizeram algo digno de nota.

O carro mais vagabundo deslizou um bom tanto, bateu num morro de cupins, virou duas vezes e parou. Dos quatro ocupantes, só as duas mulheres estavam vivas, mas não ilesas. O pai morreu aos trinta e sete anos, com o rosto completamente desfigurado e todos os ossos do lado direito do corpo quebrados. O filho mais velho teve a cabeça arrancada numa das voltas do bólido pelo pasto. A mãe quebrou a coluna e vários ossos. A irmã mais nova quebrou diversos ossos e ficou em coma por meses. Os homens estavam do lado direito do veículo, o que levou a porrada milionária.

Ao sair do coma ela descobriu, além das mortes, que os médicos haviam amputado uma perna da mãe e que tinha metade do rosto desfigurado pelos vidros e ferragens. Ela mesma tinha algumas cicatrizes nas costas, na altura da cintura, na coxa direita e no pé esquerdo. Sumiriam com o passar dos anos, mas, somadas à condição da mãe, alimentaram más lembranças por tempo demais para se exigir completa sanidade dela. Mesmo assim, levou uma vida relativamente normal, ou seja, a ante-sala do inferno.


A HORA MALDITA – parte 5 de 10

5 junho, 2009

A mãe nutria pelo marido uma paixão anormal para uma mãe de dois filhos. Razão pela qual culpou a filha pelo acidente, visto que aquela era uma viagem de volta feita para alegra-la em razão dum ataque de asma que tivera na noite anterior, caprichos do pai para com sua predileta. Jogava abertamente neste sentido e não fosse a vó intervir com força, teria morrido de fome ou de asma.

Apanhava todo santo dia, não faltava um, nenhunzinho, pode acreditar. Qualquer coisa, por menor que fosse, era motivo para uma bela sessão de chineladas. Se não fosse coisa pequena, o caso era para tapas, cintadas, cacetadas com o cabo da vassoura. E assim foi até os dezesseis anos. A partir daí a mãe foi ficando mais fraca e só lhe dava uns tapas na cara rotineiramente e umas vassouradas de tempos em tempos. Perto dos dezoito a bruxa já não conseguia erguer o braço muito bem, praticamente paralisado pelo agravamento do problema da coluna.

Contando apenas com uma miserável pensão, foram viver agregadas na casa da vó, que já socorria outro filho e dois netos. E agradeciam todos os dias a Deus por ter o pão que o diabo amassou com a bunda para comer. Seu tio era viúvo e paraplégico em razão de um tiroteio de assaltantes com a polícia num banco no qual ele era caixa e ela freqüentadora assídua na condição de secretária duma firma cliente.

Havia um outro tio, por parte de pai, o qual lhe dedicava uma atenção toda especial. Não fosse por ele, teria morrido doente, pois a mãe tinha o costume de lhe tirar a bombinha como forma de castigo, razão pela qual ele comprava outras para que fossem escondidas, o que era uma mão na roda quando a que a vó comprava acabava e não havia dinheiro para reposição. Com o tempo, fez as contas e soube reconhecer que lhe devia a vida. Mas na infância não era isso que lhe mais chamava a atenção. Era a enorme semelhança com o pai, especialmente no modo carinhoso de levá-la para passear. Ele aparecia pelo menos duas vezes por semana para ver como estava.

A vó a matriculara numa escola medíocre do subúrbio. Odiava e faltava bastante, porque nem sempre a vó podia lhe acompanhar e não era recomendável que fosse sozinha, porque era preciso andar por uma avenida muito movimentada, de modo que, não bastasse o risco de morrer esbagaçada por algum caminhão, ainda havia o problema da fumaça e volta e meia tinha ataques e não conseguia chegar à escola e nem voltar para casa. Mais de uma vez foi salva por algum motorista mais atencioso que reparava naquele bichinho mirrado e de uniforme caído na calçada e a levava para um hospital ou farmácia próxima. Sempre que isso acontecia, recebia uma surra de fio de ferro de passar roupa. A maluca achava que ela podia muito bem economizar no uso da bombinha e dos remédios para não faltar nas horas mais graves. Até que é um raciocínio aceitável, mas o diabo é que ela própria criava mais e mais ataques com as surras sem fim. Ajudaria muito também se a desgraçada parasse com a mania de criar gatos dentro de casa, os quais volta e meia apareciam mortos, assassinados pela vó com veneno ou mesmo a pauladas. E a porra da bombinha sempre em falta. Não podia carregar as secretas, tinha que mantê-las escondidas da mãe pirada, caralho.

Até recebia algum carinho da vó, mas a velha estava sempre de mau humor e parecia que a qualquer instante cairia morta, tamanho o seu cansaço. Seus primos gostavam de dar umas porradas de vez em quando, roubavam seus cadernos, o que a deixava puta da vida, porque era muito boa em redação e sempre recebia uns elogios da professora por isso e os pestes davam fim neles. No geral, eram indiferentes a ela, mas faziam dessas de vez em quando. O pai deles não ia com a fuça delas, mas fora olhar feio o tempo todo, não fazia nada diretamente, mesmo porque não queria saber de confusão com a mãe, pela qual rezava muito, mas muito mesmo, para que morresse logo para ficar com a pensão da velha e a casa e jogar as intrusas na sarjeta, de preferência num dia bem frio e chuvoso.


A HORA MALDITA – parte 6 de 10

5 junho, 2009

A pobreza era tal que foi comer pudim de leite pela segunda vez na vida, a primeira foi aos quatro anos, no dia que, fosse rica como os filhos da puta que mataram seu pai, deveria ser apresentada à sociedade, um capricho da vó para não deixar a data passar em branco. A mãe deu um escândalo e chamou-a de assassina pela última vez porque dessa vez não chorou, só lembrou que a merda que ela bebia o dia inteiro tinha muito mais culpa no cartório. Levou mais uma surra de muletas e foi dormir cedo. Ganhou a primeira delas dois anos antes.

Os primos eram quatro e cinco anos mais velhos e perceberam rapidinho que tremenda gostosa ela estava virando. O outro tio ajudava como podia, levando-a para salões de beleza de tempos em tempos e comprando algumas tranqueiras femininas na farmácia, tudo meio barato, mas melhor que nada. Não que fizesse só isso, ajudava com dinheiro vivo a vó, mas também não tinha muito a oferecer e já gastava bastante com os remédios. Claro que as pestes tentavam de todo jeito tirar suas lasquinhas e de vez em quando a cercavam no corredor e folgavam covardemente dela. Se a encontrassem sozinha em algum canto da casa, passavam-lhe a mão a valer até que ouvissem alguém se aproximando. No começo ela reclamava, mas a mãe sempre a xingava nessas ocasiões, noves fora a surra de lei. O que os pequenos também tinham acabado de descobrir era a cachaça. Junta tudo e um dia chegaram em casa mais cedo da escola, não havia ninguém ali, razão pela qual foram para seu quarto fuçar suas coisas. Quando ela chegou, vieram para cima dela e sem pensar duas vezes começaram a arrancar suas roupas e foi estuprada por um enquanto o outro segurava. Por algum estranho motivo, sacou que era mais negócio não resistir, mas mesmo assim pranteava escandalosamente. Quando a vó e a mãe chegaram da consulta desta, a velha ouviu o barulho e foi para o quarto já sabendo do que se tratava. A mãe chegou em seguida, xingou-a o quanto pôde, acusou-a de tê-los seduzido, ou melhor, disse que era uma biscate que ficava se insinuando para eles o tempo todo e para qualquer um que tivesse um pinto, até para crianças e outras barbaridades do tipo, novamente a chamou de assassina e que estava mais do que de saco cheio dela. Cansada de falar, foi em linha reta em direção à pobre caída no chão, pisou no seu pescoço com a única perna, segurou-se na parede e desceu-lhe duas muletadas na cabeça. Parou de chorar. Acordou no hospital umas vinte horas depois.

Aos trancos e barrancos, mais por teimosia do que por gosto, foi concluindo seus estudos. Arrumou um emprego aos quinze, numa padaria. Levantava todo dia cinco horas da manhã para dar tempo de chegar às seis. Trabalhava até as seis e ia para a escola noturna. Quase todo o salário era gasto com remédios, para si e para a mãe. Já estava bem melhor da asma, mas ainda era um problema dos grandes.


A HORA MALDITA – parte 7 de 10

5 junho, 2009


Apesar de tudo que vivia em casa, ainda conseguiu alguns anos depois passar no vestibular para jornalismo, mas a universidade ficava em outra cidade e não tinha dinheiro para pagar o transporte, especialmente se parasse de trabalhar. Outra vez foi o tio que a socorreu. Não naquele momento, mas um ano depois, quando conseguiu uma bolsa com um amigo sócio duma faculdade particular. De modo que ele lhe pagou os estudos.


A mãe foi piorando e piorando, em todos os aspectos, mas como estivesse cada vez mais paralisada e fraca, já não apanhava tanto. E a vó também estava bem ruim das pernas, literalmente falando.

Aos dezoito se apaixonou para valer pela primeira vez. Não havia muito tempo ou condições antes disso, mas teve lá suas quedinhas, mas cada vez que um menino se aproximava mais, os primos aprontavam das suas, fosse arrumando briga, fosse gritando no meio da rua que ela não era mais virgem porque tinha dado para eles. Era um colega de sala, um camarada que trabalhava com o pai numa transportadora e que nunca conseguiu explicar muito bem porque resolvera fazer jornalismo. Sexo foi um problema entre eles por algum tempo, mas um dia ela enfiou na cabeça que o único modo de passar por cima daquela merda de anos antes era deixando o cara enfiar dentro dela logo duma vez. Foi num fim de festa, o cara bem bêbado e como ela não mais resistisse às investidas ousadas e até meio porcas, foi ficando mais e mais doido e foi um troço bem animal, necas de romantismo, mas pelo menos não doeu muito e em alguns momentos até que conseguiu se entreter de leve. O sujeito não foi grande coisa nas primeiras vezes e ela só cumpria tabela, mas um dia ele conseguiu fazer a coisa prestando atenção nela e dali por diante ela foi pegando gosto pela coisa, especialmente porque começou a tomar as rédeas. Não era a melhor vida sexual possível, mas pelo menos estava próxima do que se espera seja a normalidade.

O cara era um galinha que não podia ver uma irmãzinha dando sopa e logo ela descobriu. Chorou muito, mas no dia seguinte já estava encarando bem as coisas. Seguiu a vida numa boa, sem problema algum. Arrumou outro namorado logo. E ele também era galinha. Veio outro. Também galinha. E assim foi, ela sempre descobrindo. Até que se tocou que não tinha jeito de competir com os hormônios masculinos, de modo que parou de procurar namorados. De vez em quando deixava um ou outro camarada numa festa ser mais ousado. Escolhendo bem e sempre no controle, se divertia cada vez mais e não sentia realmente falta de algo mais afetivo.


A HORA MALDITA – parte 8 de 10

5 junho, 2009

Aos dezenove a mãe morreu. Foi quem a encontrou caída no meio da sala. Em volta, cacos da mesa de centro. Caiu em cima e, como não tivesse forças para se levantar, não teve como pedir socorro e assim o talho no pescoço deixou vazar quase todo seu sangue. Não foi ao velório, ficou no quarto chorando, nem tanto pela vaca, mas principalmente pela crueldade da vida. Foi e voltou ao enterro em silêncio. A vó não lhe recriminou jamais, mas os primos e o tio a xingaram a valer. Ambas compartilhavam a idéia de que aquilo fora na verdade um suicídio.

Como agora uma pensão acabasse, teve se virar para ajudar a sustentar a casa. Pediu um aumento e conseguiu, uma miséria, mas era algo. Entregava tudo para a vó, só ficava com o necessário para pagar o seu ônibus. A comida vinha do trabalho mesmo, meio descontada pelo patrão. Como trabalhasse muito e fosse competente, mesmo odiando o emprego, o cara dava essa colher de chá. Mas claro, a diferença mesmo estava no tio. Já não precisava mais de remédios, mas ele a ajudava esporadicamente com livros e cópias, essas coisas.

O curso ia de vento em popa, apesar da faculdade ser uma verdadeira fria, mas pelo menos servia para lhe mostrar o caminho das pedras e ia se virando por conta, como dava, superando em anos luz o desempenho médio da classe. Ela ficava muito atenta às oportunidades de estágio remunerado, mesmo sabendo que no fim seria colocada para fazer mil e uma coisas pouco a ver com o curso, mas a merda do nome da faculdade era um verdadeiro sinal de lepra nela.

A velha morreu logo em seguida. Foi ela outra vez quem encontrou o cadáver, num domingo de manhã. Eram umas dez horas. Estava debruçada sobre a pia, numa posição estranha, com a cabeça enroscada na pia, razão pela qual não caíra. Primos e tios a culparam por não ter prestado socorro, mas não houve barulho algum e para se defender ela só teve o trabalho de perguntar onde estavam que não em casa, se na casa de alguma outra prima estuprando-a. E o fez com um tal ódio nos olhos que eles deram no pé sem falar nada.

Dessa vez chorou o tempo todo. Até pensava no lado prático das coisas, mas, apesar dos pesares, a vó gostava dela e vice versa e não segurou muito. No fim, o tio arrumou um advogado para deixa-la chorar em paz. Apesar da gritaria, ela acabou com metade da casa, porque o tal tio não era mesmo seu tio, embora tratado como filho, era só um genro. Então dividiu o quinhão com os primos. Combinando tudo com todo mundo, ficou acertado que ela ficaria com o outro tio, a casa seria usada pelos outros por dois anos e então seria vendida e o dinheiro repartido. Era um risco, porque eles bem poderiam dificultar a venda até a morte, mas achava que valia a pena fazer assim para ficar longe deles. Ficou acertado também, por insistência dela, que da sua parte o tio receberia um tanto pelo aluguel da dependência onde moraria dali por diante.

O tio estava com o casamento no fim, mas a sua mulher gostava dela também e não houve problema algum nessa mudança de casa. Seus outros primos também a achavam uma tremenda duma gostosa, mas de um modo mais decente. Sonhavam e brincavam, nada mais, mesmo porque não tinham coragem de se meter com uma mulher daquelas, sabiam que não era para seu bico. Tempos depois, foram todos embora, a casa vendida pelo divórcio, mas conseguiram deixa-la ali pagando um aluguel apenas simbólico pela dependência, arcando em separado com água, luz e telefone. Como não desse trabalho algum, tudo ficou bem. Os novos donos eram um casal de velhinhos fazendo hora extra por aqui e alguma companhia era útil, porque os filhos não queriam mesmo ficar com eles.

Os primos e a mãe foram embora da cidade e o tio conseguiu comprar um pequeno apartamento do outro lado da cidade. Ainda se viam com freqüência, apesar da dificuldade de dinheiro e horário.


A HORA MALDITA – parte 9 de 10

5 junho, 2009


Nesse tempo, já desesperada por um estágio para pelo menos sonhar em sair daquela padaria de merda, acabou dando com um anúncio no corredor da faculdade e foi ver qual era. Era uma tremenda duma bosta, mas já estava quase terminando o curso e não tinha conhecido ninguém em lugar algum. Obviamente, não era um estágio porra nenhuma, era um trabalho muito mal remunerado, isso sim. Mas ela nem ligava, só queria ter algo por onde começar. O diabo é que o trampo era de madrugada, ela faria um estágio em locução. De madrugada. Com muito custo, conseguiu fazer um acerto com o patrão, reduzindo a carga horária e salário, além de um ajuste nos finais de semana. Para facilitar, decidiu que abandonaria algumas disciplinas, levaria depois no outro ano. Tudo contado, trabalharia todo santo dia e dormiria no máximo cinco horas por noite, com exceção de sábado para domingo, mas aí normalmente dormia é menos por conta das eventuais baladas, porque afinal, de algum lugar tinha que sair um mínimo de prazer naquela vida fodida.


E lá foi ela, uma da madruga, caminhando pelas ruas até chegar na tal rádio. Não entendia porque não fechavam ou colocavam programação gravada, mas pouco importava, estava ali e era uma oportunidade, então o negócio era encarar mais essa e deixar as perguntas para depois. Demorou, mas sacou mais ou menos qual era o lance ali. O causo é que a rádio já tivera seus dias de glória e foi a pioneira na região na transmissão ininterrupta ao vivo, quer dizer, com locutores a noite toda. Mas as coisas mudaram, outras rádios foram tomando a dianteira, comendo sua audiência e o dono tinha mais interesse sentimental do que empresarial por ali. Mas fazia questão de manter, fosse como fosse, a locução vinte e quatro horas. Como não valia mais a pena pagar o salário de alguém por toda uma noite, foi fazendo umas gambiarras, até que teve a idéia de contratar um estagiário para dizer as horas, o prefixo e ler alguma manchete de jornal, só para dar a impressão de que havia um ser vivo acordado junto com o seu pequeno público. Conversando com ela, percebeu o interesse e como ela tivesse outro emprego, sacou que não teria problemas com a justiça no futuro.


Casou de no mesmo tempo um programador e DJ ter de compensar umas férias a mais que tirou. Era um cara ranzinza que só vendo. Resmungava mais que velho jogando baralho. Ele é quem seria o responsável pelas músicas noite adentro. E tinha um gosto fedorento de ruim. Na verdade, tinha mesmo muito bom gosto, curtia um jazz de primeira, sacava muito de blues e também de música clássica. Só não entendia nada do que o povo gostava e achava que estava de bom tamanho colocar umas músicas dos Beatles tocadas por sinfônicas ou mesmo, puta que pariu, pelo Richard Clayderman. Pausa para o vômito.


E tudo que precisava fazer era mesmo a cada meia hora dizer o prefixo da rádio, informar as horas e ler alguma nota de jornal. Das duas às quatro, era isso. E desde o primeiro dia foi de terninho, carregado dentro duma mochila. Se trocava na saída da padaria e assistia aula assim. Povo achava estranho, mas estupenda do jeito que era, passava bem. E fazia questão, mesmo sem ninguém a vê-la ali dentro daquele jeito. Pensava que era o mínimo que podia fazer para se mostrar profissional. Revisou tudo quanto tinha estudado sobre rádio, conversava com as pessoas trabalhando alguma técnica vocal que vira de relance numa disciplina qualquer, enfim, ia se virando, como de hábito.


Perguntava com jeitinho ao seu companheiro de madrugadas se ela podia falar mais alguma coisa. Nem pensar. Bufava e ficava lá esperando. E ficava imaginando se o cara não podia pelo menos tentar se antenar, nem que fosse só para repetir a programação do dia, mas ele gritou com ela quando apenas tentou sugerir algo assim, afirmando que eram públicos muito diferentes.


Ao menos podia escolher que notícias de jornal ler. E até podia levar o seu próprio jornal, de modo que começou a garimpar as notícias mais bizarras possíveis. Logo começou a ler seus colunistas favoritos. O cara não se importava muito, bastava que ela não falasse muito, desse o prefixo e informasse as horas.


Era uma bosta aquilo, mas era o que tinha. Do contrário, o máximo que faria da vida seria ser gerente da padaria. Um futuro branco. De farinha. A coisa foi indo desse jeito fodido por um bom tempo, até que piorasse de vez.


Um dia saiu da faculdade e deu de cara com o casal de velhinhos. Eles sabiam que ela iria chegar em casa só às cinco da matina, então foram até ela dizer que seu tio morrera assassinado num assalto por uns pivetes. Quem lhes contou foi a ex-esposa, que fez questão de dar a notícia a ela o mais rápido possível, mas não tinha como ir até lá, então ligou para a casa deles e implorou que a levassem ao velório.


Caiu dura no chão. Levantou um minuto depois, rodeada de gente. Saiu correndo e não houve quem pudesse impedi-la de ir para onde quer que estivesse indo. Parou numa esquina escura e começou a gritar sem parar. Chorou até secar as lágrimas. Gritou, chorou e assim ficou por muito e muito tempo. Pensou seriamente em se matar. No fim, já entorpecida, andou um pouco mais, chorando e gritando, até chegar em frente a um boteco que estava fechando as portas. Catou umas notas velhas na mochila e pediu uma garrafa de uma batida bem vagabunda de amendoim. E foi para a rádio. Mais bebendo que andando.


Chegou uma hora atrasada e o cara soltava fogo pelas ventas. Foi gritando para cima dela. Ela deu-lhe uma garrafada no nariz que o pos abaixo. Foi direto ao microfone. Chorava ainda como uma criança, mas já não tinha quase voz alguma, parecia uma droga dum pato cansado falando. Bom, verdade seja dita, tava com uma rouquidão que a fazia parecer uma puta do disque-sexo. Conseguiu dizer que iria anunciar um óbito. Usou exatamente essa palavra, acredite se quiser. E foi a última coisa que saiu da sua boca. Começou a chorar, com o microfone aberto mesmo. E ali ficou uns bons minutos, mas já não agüentava mais chorar, era merda demais e já tinha se tocado que chorar nunca resolvia porra nenhuma. Então deu uma porrada na mesa e disse com todas as forças, ou seja, quase nenhuma: eu quero que uma alma decente faça o favor de matar os filhos da puta que fizeram isso comigo. Que acabem com sua raça do jeito mais dolorido possível. Eu tenho vinte anos, meu pai morreu por causa duma brincadeira de boyzinhos chapados num carro que daria para pagar o salário de um pedreiro por toda sua vida, minha mãe ficou louca e me usou como saco de pancadas até morrer. Eu fui estuprada ao catorze anos por meus primos. Eu quase morri mais de mil vezes de tão doente porque não tinha grana em casa. Minha vó foi sugada pelos filhos da puta dos meus primos e seu pai vagabundo. E agora, uns pivetes noiados mataram o único homem decente que eu conheci na minha vida. Mataram para comprar uma porra que os deixaria tão loucos que acabariam matando alguém num racha por aí. Eu não sei que porra de sentido a vida pode ter e estou pouco me fodendo para isso. Eu só sei de uma coisa, a culpa disso tudo não é de Deus ou do Diabo, é de cada um dos filhos da puta que fizeram o que fizeram podendo fazer diferente. Eu quero ver se algum deles vai ser homem de entrar por aquela porta agora, qualquer um deles, qualquer um. Pode vir, eu estou aqui. Venham priminhos, venham me pegar de novo, eu estou aqui. Venham boyzinhos e noiados, eu estou aqui. Venham vagabundos de todo tipo, de todo canto. Eu te dou cinco minutos para vir aqui. Quero ver se tem homem de verdade nessa porra de cidade.


A HORA MALDITA – parte 10 de 10

5 junho, 2009

Continuou chorando. Então, mais ou menos os tais cinco minutos depois, tirou de dentro da mochila um revólver, olhou bem para ele e colocou-o na boca. Bam. O tiro foi ouvido por toda a cidade, quer dizer, em todo canto da cidade onde houvesse um guarda noturno com insônia. E nisso os telefones já tocavam sem parar e o ranzinza não tinha feito senão dizer que não dava para conversar com a moça não, que ele estava é tentando abrir a porta sem arrombar porque não ia pagar nada por causa do chilique duma maluca qualquer. Mudou de idéia quando viu a arma, meteu o pé na porta, entrou correndo, na verdade pulando e conseguiu arrancar o cano da boca dela, de modo que a bala só pegou de raspão a sua orelha. Segundos depois, a xingava a valer. E o microfone aberto. E os telefones tocando sem parar. E a polícia não apareceu. Uma tentativa de suicídio ao vivo e a polícia não apareceu.

Mil palavrões depois ele encheu o saco com aquela merda de telefone tocando na outra sala e foi lá e disse em alto e bom som que a doida não iria falar com ninguém. De lá ela gritou em fraco e mau som que atenderia quem bem entendesse e quando bem entendesse e que era para ele passar a ligação. Realmente puto, o cara passou.

E o camarada disse “alô”. Ela só perguntou quem ele era e o que queria dizer. E ele falou seu nome e contou que a mãe dele também morrera num assalto e que, anos depois, ele conseguiu pegar os vagabundos, tinha pago para alguém dar um jeito neles na cadeia. E ela disse que não podia ter feito coisa melhor, agradeceu e desligou.

Um segundo depois outro camarada disse “alô”. E de novo ela perguntou quem ele era e o que queria. E o cara falou que nunca mais ia andar direito na vida por causa dum bêbado que o atropelou e agora só tinha conseguido um emprego de merda como vigia dentro duma loja de lingeries. E mandou todo mundo tomar no cu, porque era praticamente um aleijado que jamais conseguiria uma mulher decente e era obrigado a ficar vendo aquelas calcinhas e aqueles pôsteres e tudo que ele podia fazer era bater uma todo dia no serviço para não perder o gosto pela vida. E ela respondeu que ele pelo menos não estava vivendo de favor ou de algum tipo de pensão do governo, que tinha vergonha na cara e apesar de tudo ainda achou algo de bom na vida, o que o tornava melhor do que ela, que, afinal, tinha acabado de tentar se matar.

Ficou nessa até que chegasse o locutor do outro horário. Olhou para a cara do rabugento toda ensangüentada. Nem os empregados ouviam mais aquela rádio, de modo que ele não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Olhou para ela, para ele. Ela conversando coisas bizarras sobre morte, drogas, sexo e o diabo e ele sem entender nada. Quando deu sua hora, chegou na porta, bateu no relógio de pulso, olhando para ela.

Ela terminou aquela conversa, suspirou, disse o prefixo da rádio, informou que eram seis horas e nove minutos. Ia se levantando encarando o camarada mal encarado na porta e disse bem baixinho que aquela era a hora maldita e o dia de todos estava apenas começando.

Pelo resto do dia os telefones não pararam de tocar. Enquanto ela terminava de chorar no velório, o dono da rádio se resolvia com a polícia. Tinha medo de perder a licença, mas no fim tudo que os tiras queriam era ter certeza de que a moça entregaria a arma. Conseguiu encontra-la em casa, jogada no chão, ao pé do sofá, olhando para o teto. Fez mil rodeios até dar o recado. E disse que ela não precisava se preocupar, que ainda podia ir no estágio. Ela teve vontade de mandar ele tomar no cu ao ouvir a palavra estágio, mas teve presença de espírito de dizer que só voltaria se pudesse escolher suas músicas. O cara não teve peito de se impor e aceitou. Aí ela teve muito peito e se impôs mais ainda; queria falar mais. E o cara aceitou bovinamente.

E ela voltou lá na mesma noite. E isso já faz um bom tempo, já é história. E eu vou te contar meu chapa, eu queria ter escrito essa porra dessa puta história.