CTRL+C

11 agosto, 2009

Copio e colo um interessante artigo sobre copiar e colar no jornalismo científico. Veio do blog scienceblogs.com.br (http://scienceblogs.com.br/rainha/2009/08/diploma_ctrlc_ctrlv_jornalismo.php)

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O jornalismo está passando por profundas mudanças, uma grave crise das mídias impressas, ainda mais frente ao menor custo de blogs para produzir um conteúdo de qualidade. E uma das primeiras áreas a sofrer cortes nos jornais é a ciência. Some a isso os blogs de ciência, geralmente escritos por cientistas e a recente queda da obrigatoriedade do diploma de jornalismo e temos o cenário a seguir.

Compartilho da idéia do Carl Zimmer de que os jornalistas são indispensáveis para reportagens científicas, principalmente as investigativas. Demandam tempo e dedicação, e um poder de síntese e discursividade geralmente só obtidos depois de um curso de comunicação. Um livro como A próxima peste, em que Laurie Garret foi até a África e reviu passo-a-passo os eventos do surto de Ebola, entre outras investigações, ilustra bem isso. Mas infelizmente este é o tipo de jornalismo que está sendo inibido com a crise e, desde antes dela, são pouquíssimos os jornalistas capazes de absorver e sintetizar informação científica com fluência.

Quero dar um exemplo do tipo de jornalismo científico mais comum, que dispensa diploma. Na verdade, onde o diploma atrapalha:

Dia 05 de agosto, saiu um artigo sobre HIV na Nature daqueles que mudam a perspectiva de uma área – tanto que devo escrever sobre ele em breve. Desvendaram, em parte, a estrutura do genoma do HIV, como ressaltou Brandon Keim (jornalista dos bons) nesta ótima reportagem da Wired.

Isso é importante pois, a sequência do material genético do HIV, RNA, já é muito conhecida. Bancos de dados como o PubMed e Los Alamos possuem milhares de sequências do vírus, do mundo todo e de vírus próximos, como os vários tipos de SIVs (vírus da imunodeficiência símia): de chimpanzé, gorila, macaco verde e outros. As primeiras sequências são do começo da década de 80, quando o vírus foi isolado e identificado como causador da AIDS. A novidade do artigo foi entender o formato que esse genoma tem.

O genoma do HIV é formado por duas cópias (não necessariamente idênticas) de uma fita simples de RNA de mais de 9000 bases. Diferente do DNA de fita dupla, que quase sempre tem a estrutura fixa de uma dupla hélice, o RNA pode adotar diferentes formas, com regiões complementares se ligando em uma fita dupla, regiões diferentes se afastando e pontos de contato com outras moléculas. Mais detalhes no texto futuro.

No dia seguinte, vejo a seguinte reportagem na agência Fapesp: #fail1

Sequenciado o genoma do HIV
A estrutura de um genoma completo do HIV-1, o vírus causador da Aids, foi sequenciada pela primeira vez por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte (UNC) em Chapel Hill, nos Estados Unidos. […]

Claramente o autor se confundiu e disse que o genoma foi sequenciado, algo já feito há mais de 20 anos. Mandei um e-mail falando sobre o engano e, numa postura completamente diferente da arrogância da Veja, a reportagem foi corrigida em minutos (o original com o erro ainda pode ser visto aqui):

Genoma do HIV tem estrutura desvendada
Agência FAPESP – A estrutura de um genoma completo do vírus HIV-1, causador da Aids, foi desvendada pela primeira vez por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte (UNC) em Chapel Hill, nos Estados Unidos.

Até aqui, tudo bem, enganos acontecem, e este foi corrigido prontamente, com direito a e-mail agradecendo o aviso. Eis que, minutos depois, me mandam a seguinte reportagem da Veja: #fail2

HIV tem genoma decodificado
Cientistas americanos afirmam ter decodificado o genoma completo do vírus HIV-1, causador da Aids. O anúncio foi feito na quarta-feira, em estudo publicado na revista científica Nature, e abre caminho para o desenvolvimento de novos tratamentos contra a doença.

Caramba, o mesmo erro da Agência Fapesp, horas depois da notícia sair lá? Resolvi fuçar o Google para saber a fonte disso. Eis que:

No Terra: #fail3
Nova técnica fornece “visão geral” do genoma do HIV – Uma nova técnica permitiu pela primeira vez a decodificação de todo o mapa genético do vírus da Aids… O DNA depende de “tijolos” chamados nucleotídeos, que transmitem a informação sobre duas tiras. Essas unidades básicas são conhecidas pelas siglas A, C, T e G. Já o RNA tem apenas uma tira e depende não só dos nucleotídeos, mas também de um complexo padrão de dobraduras para transmitir a informação. [aqui claramente deram uma desviada no assunto, por não saberem comparar o DNA ao RNA]
Há outros erros mais grosseiros, como o título da reportagem do DCI:
Cientistas americanos decodificam DNA do vírus da AIDS
O Correio Braziliense ainda tentou inovar, entrevistou um dos autores do artigo por e-mail, mas a lambança não foi menor: #fail4
“[…]Descobrimos que o genoma do HIV-1 é amplo e contém duas tranças de RNA com 10 mil nucleotídeos em cada”
E eu que já sabia disso desde 2004, não entro no artigo por quê?

Mas o buraco é muito mais embaixo. Procurando um pouco mais, achei o press release da notícia. A coisa funciona assim, quando um pesquisador de uma instituição X vai publicar um artigo, ele avisa a acessoria assessoria (valeu, zandormaz!) de imprensa da instituição que transforma a pesquisa do artigo em algo inteligível para quem não é da área. Neste caso, Kevin Weeks, professor de química da University of North Carolina School of Medicine, mandou o artigo para Kim Spurr fazer a “tradução”, que conta inclusive com fotos do grupo de pesquisa.

Veja o texto original do press release, grifos meus:

UNC researchers decode structure of an entire HIV genome

CHAPEL HILL – The structure of an entire HIV genome has been decoded for the first time by researchers at the University of North Carolina at Chapel Hill. The results have widespread implications for understanding the strategies that viruses, like the one that causes AIDS, use to infect humans.

The study, the cover story in the Aug. 6, 2009, issue of the journal Nature, also opens the door for further research which could accelerate the development of antiviral drugs.

HIV, like the viruses that cause influenza, hepatitis C and polio, carries its genetic information as single-stranded RNA rather than double-stranded DNA. The information encoded in DNA is almost entirely in the sequence of its building blocks, which are called nucleotides. But the information encoded in RNA is more complex; RNA is able to fold into intricate patterns and structures. These structures are created when the ribbon-like RNA genome folds back on itself to make three-dimensional objects.

Kevin Weeks, Ph.D., a professor of chemistry in UNC’s College of Arts and Sciences who led the study, said prior to this new work researchers had modeled only small regions of the HIV RNA genome. The HIV RNA genome is very large, composed of two strands of nearly 10,000 nucleotides each.

[…]

“There is so much structure in the HIV RNA genome that it almost certainly plays a previously unappreciated role in the expression of the genetic code,” Weeks said.

Swanstrom and Weeks note that the study is the key to unlocking additional roles of RNA genomes that are important to the lifecycle of these viruses in future investigations.

[…]

Weeks added: “We are also beginning to understand tricks the genome uses to help the virus escape detection by the human host.”

Agora vou fazer uso do grande diploma Ctrl+C e Ctrl+V, com especialização em Google Translate. Não corrigi nenhum erro de tradução, para vocês verem como fica:

A estrutura de um genoma inteiro HIV foi decodificado [é aqui que trocam estrutura por sequência] pela primeira vez por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. Os resultados têm implicações para a compreensão generalizada das estratégias que os vírus, como o que causa a SIDA, uso de infectar seres humanos.

O estudo, o artigo de capa no Ago. 6, 2009, edição da revista Nature, também abre as portas para futuras pesquisas que possam acelerar o desenvolvimento de medicamentos antivirais.

HIV, como o vírus que causa a gripe, a hepatite C e a poliomielite, carrega sua informação genética como single-stranded RNA ao invés de double-stranded DNA [basta usar ou pouco melhor a ferramenta para trocar por fitas simples e duplas]. A informação codificada no DNA é quase inteiramente na seqüência dos seus alicerces, que são chamados nucleotídeos. Mas as informações codificadas em RNA é mais complexa; RNA é capaz de dobrar em intrincados padrões e estruturas [rapaz, uma busca no Google por essa frase entrega tudo]. Estas estruturas são criadas quando o genoma RNA fita-como pregas volta sobre si próprio para tornar objectos tridimensionais.

Kevin Weeks, Ph.D., um professor de química em UNC da Faculdade de Artes e Ciências, que conduziu o estudo, disse que antes deste novo trabalho investigadores haviam modelado apenas pequenas regiões do genoma RNA VIH. O RNA VIH genoma é muito grande, composto por duas vertentes de quase 10.000 nucleotídeos cada.

[…]

“Há tanta estrutura do RNA do HIV no genoma que quase certamente desempenha um papel não reconhecido anteriormente na expressão do código genético”, disse Weeks.

Swanstrom Semanas e nota que o estudo é a chave para desbloquear adicionais papéis genoma de RNA, que são importantes para a vida útil desses vírus em futuras investigações.

[…]

Semanas [aqui ele traduziu Weeks] acrescentou: “Nós também estamos começando a compreender o genoma usa truques para ajudar o vírus escapar detecção pelo hospedeiro humano.”
Pronto, reportagem feita. Sério. Olhe qualquer notícia em português sobre a descoberta e você vai ver este mesmo texto. A mesma estrutura, as mesmas frases, aquela citação ali embaixo e tudo o mais. A frase sobre vírus de RNA, como gripe, hepatite C e poliomielite, e o “intrincados padrões e estruturas tridimensionais” já se tornaram um clássico.

Minto. Alguns ficaram com a tradução da Reuters. Mas não encontrei nenhuma notícia em português que de fato explicasse o que foi feito de uma maneira diferente das traduções. Duvido que alguém, tenha sequer olhado para o artigo original.

Na reportagem da Wired, dá para perceber que o autor leu o trabalho, leu um outro artigo da própria Nature sobre a descoberta, e aí sim escreveu. Tanto que ele realmente captou a inovação do trabalho e explicou muito bem, a começar pelo título:

Mapping HIV Genome’s Shape, Not Just Sequence

Sei que a pressão por notícias rápidas é enorme e que, quase nunca (torço do fundo do meu coração), é o jornalista quem opta por simplesmente copiar e colar um press release. Mas no caso deste artigo do HIV, quem fez isso simplesmente não conseguia entender o assunto da reportagem, tanto que copiaram errado e contribuiram com tantos #fail. Agora me diga, como alguém que não entende o assunto que está copiando pode informar outros? E qual a necessidade desse tipo de jornalismo quando o press release é de reprodução livre, e o Google Translate está aí? Qual o papel do caderno (quem dera fosse um caderno) ciência de um jornal?

Por isso, acho cada vez mais importante que cientistas e entendidos dediquem parte do seu tempo e conhecimento para explicar ciência (de preferência no ScienceBlogs Brasil, claro). E cada vez tenho mais respeito pelos poucos jornalistas que entendem do que estão falando e dão utilidade ao diploma que conquistaram. Este nunca cairá em desuso.

[update] Nem nisso o Kibe é original
[update2] o que falei aqui vale para a maioria das notícias de ciência, por se tratar de HIV fui mais além nessa
[update3] minha ferramenta de busca de plágio já acusou mais de 20 casos, por causa do trecho do press release que colei.